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quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A xícara e o café com leite

Sozinha em casa e vivendo intensamente a espera da aposentadoria. Ela deve chegar em 3 ligeiros meses – um pouquinho mais, quem sabe, mas há de chegar. Eu saboreio esse tempo. Sempre trabalhei no pesado: dar aulas para a juventude não é pouca coisa! Uma juventude tem ânsia de não sei quê, uma vontade insuperável de estar viva e dizer ao mundo que tem suas vontades e suas verdades absolutas e inegociáveis. Vontades insuspeitas e incontroláveis. Confusas e indizíveis porque não sabem expressar exatamente tudo o que querem e a medida do que desejam. E como não sabem, falam alto, ficam em pé para se dizerem vivos e donos dos destinos do mundo, não escutam para afirmarem que a outra voz não lhes interessa.
E então eu penso: o dia vai chegar. Eu vou me apresentar ao INSS  e a minha documentação será aceita. Receberei um “deferido” e sairei sorrindo e com a consciência do dever cumprido.  Terei feito a minha parte para a construção de um país mais justo, menos sofrido... não tem jeito,  o idealismo nunca me abandonou! Muitos já me abandonaram ao longo da vida, mas o idealismo foi o fiel companheiro das horas de mais cansaço e dores no corpo. Quero continuar trabalhando, num lugar silente, em que eu possa me dar ao direito de simplesmente pensar sem que me chamem, sem que me insistam, sem que reclamem por alguma coisa que, muitas vezes, eu nem sei o que é.
Pensativa, deleitando a proximidade do evento, de estar no direito constitucional do afastamento, abri um armário e retirei dali uma xícara, um pires e um bule de inox. Eu nunca tinha utilizado aqueles apetrechos específicos e tão especiais e, ao mesmo tempo, tão corriqueiros de dentro de uma casa.  A xícara e o pires eram de um conjunto que eu havia ganho de presente de casamento, quase três décadas atrás. Estilo moderno, motivos coloridos, nunca saíram de moda e que sempre me agradaram muitíssimo.
E eu resolvi tomar café com leite, numa tarde de terça-feira de sol de inverno, como num cerimonial, cheia de encantamento e deleite pela vida que construí e que estava prestes a ser escrita de uma outra forma: capítulo 2: A Redescoberta. Quem me deu esse presente havia sido amigo do meu pai desde a infância. Homem leal, íntegro e de fala mansa, apelidou o meu pai no primeiro contato, na década de 40, no bairro do  Ipiranga. O apelido: leão. Recém-chegado de Casa Branca, interior de São Paulo, o meu pai tinha sotaque de gente simples. Um garoto da rua riu do jeito caipira  de se expressar e o meu pai não pensou duas vezes: deu-lhe uma bofetada certeira no meio das fuças... e não teve mais jeito: ficou “leão” para todo o sempre.
E esse amigo também foi presente no coração do meu pai para sempre.
Então veio o casamento. O meu casamento. Com ele a alegria do me sentir emancipada, verdadeiramente dona do meu destino. Minha casa. Embora pequena, pequeníssima no começo, era um começo. E não era qualquer tempo. Foi pelo tempo do natal. Com ele o nascimento de uma vida com esperança, de mais sorrisos, passeios e descobertas. Eu queria descobrir o mundo, sentir a liberdade de andar, de voltar pra casa a qualquer hora e em qualquer tempo. Alguma falta de  disciplina, quem sabe. O almoço não precisaria sair pontualmente ao meio dia. Qualquer hora, pois almoço é almoço e não precisa de pontualidade britânica.
Então veio o casamento. Cheio de projetos e com a idéia fixa, latejante: “o meu vai ser diferente. Vai ser de lenta construção. Vai ser de respeito, de crescimento e de trocas! Essa história vai ser diferente dos outras que não têm cor e muito menos encantamento e esperança”.
E muitos convidados. E muita alegria e sem nenhuma pitada de soberba. Simples em todas as coisas, mas sem economia de sentimentos e sonhos.
Os presentes. Sim, os presentes foram especiais pelo  fato de terem sido dados com um carinho tão grande... eu me lembro do olhar das pessoas ao me ofertarem. Olhares verdadeiros e com brilho. Então qualquer presente era o retrato de uma presença sincera na minha alma e então todos eles foram guardados e cuidados com o carinho correspondente ao olhar das pessoas que me  agraciaram.
E veio o jogo de café que o amigo do meu pai, lá do Ipiranga,  me trouxe. De tanto respeito e consideração pelo amigo do meu pai, eu não me dava ao direito de usar o aparelho de chá e café. Era como uma coisa sagrada, a mistura de uma amizade de infância,  a história de vida de um menino pobre, que tinha vontade de comer doces e sorvetes mesclada com a história do bairro operário do Ipiranga e com o trabalho na mesa empresa: as Linhas Corrente – dos ingleses, o cinema para assistirem “Escola de Sereias”, os amores e desencantos.
E eu tomei café com leite naquela xícara, sozinha, revivendo, sonhando e saboreando a vida. Deixando a memória passar pelo coração diversas vezes, sorridente e fluida.  Eu sorvia a bebida muito quente e segurava a xícara  com o dedinho arrebitado, propositalmente fazendo graça para mim mesma,  imitando as peruas e rindo da vida, das memórias e das saudades.
Vera Morata, agosto de 2010

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