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sexta-feira, 23 de maio de 2014

Xícaras de chá e momentos especiais

[...] Antes de ir para Caracas, eu morava em três lugares. Tinha um apartamento em São Paulo, onde Silvio trabalhava. Uma casa em Niterói, a minha residência oficial, de dois andares e guardiã do espólio de meus pais, em especial do de minha mãe e sua compulsão por colecionar louças. E um apartamentinho no Rio, a Cápsula, quase um acidente de percurso, pois ficava pertinho de onde eu trabalhava e que decidi comprar como um efeito colateral da violência urbana.

Quando viajei, o problema não foram os imóveis, que estão alugados, a exceção da Cápsula, que é meu reduto quando estou no Rio. O problema foram os móveis e utensílios. Três casas totalmente equipadas significam três de tudo, ou pior, criando-se uma progressão geométrica, três vezes muitas coisas. Por exemplo, tenho guardados na Cápsula mais de quinze pirex sem nenhuma perspectiva de uso. Grandes, pequenos, ovais, quadrados, redondos, velhinhos, novinhos... Podia abrir um restaurante e um bar só com o estoque atual de copos, pratos e bandejas. De talheres sou meio fraquinha, são apenas dois faqueiros. E se pensam que é fácil vender tais objetos, que venham me ajudar, pois como comerciante, sou uma boa professora de inglês.

Na semana passada, enquanto pensava o que dar de presente a uma de minhas primas, tive a ideia de presenteá-la com parte do acervo de louças de minha mãe. Ninguém melhor do que ela, que adora chá, para receber as chávenas japonesas de porcelana casca de ovo. Seria um carinho meu e da Tia Thereza, por toda a ajuda que ela tem me dado com documentos e cartórios.
Comprei uma caixa bem bonita e papel seda e um laço repolhudo. Depois retirei as xícaras do armário e decidi lavá-las antes de preparar o presente, pois estavam cheias da poeira dos tempos (expressão tantas vezes usada por mamãe).
Enquanto as ia lavando, entre muita espuma, água corrente (que me perdoem os ambientalistas) e um enorme cuidado para não quebrá-las, tentei lembrar quantas vezes, ao longo de toda a minha vida, nós havíamos usado as chávenas. Por mais que tentasse, só conseguia pensar em um ou dois momentos. Por que tão poucas vezes? Mamãe adorava as xícaras e não era raro tomarmos chá. Então, por que tão poucas vezes?


As xícaras eram, são como joias. Bonitas, delicadas e cada vez mais raras. E joias são usadas em momentos especiais.

As xícaras são de porcelana muito fina e qualquer gesto brusco pode quebrá-las.
Assim, na espera de um momento especial e por cuidado para não perdê-las, o que se perdeu foi o prazer de se tomar chá em chávenas casca de ovo, que, frescuras à parte, faz o sabor da bebida ficar ainda melhor.

Lavava as xícaras e lembrava de inúmeros momentos simples e cotidianos em que tomamos chá conversando muito e rindo muito e brincando muito. Momentos perfeitos, como fina porcelana. Momentos perfeitos para finas porcelanas, mas elas não foram usadas. Permaneceram na arca, em sua potencialidade de beleza e prazer. Havia que preservá-las e, por isso, foram subutilizadas. Para mantê-las intactas, foi necessário escondê-las e talvez, depois de algum tempo, até mesmo esquecê-las lá no fundo da arca de jacarandá, a arca das louças especiais, para os momentos especiais.

Parto hoje para Caracas. Dei a arca para uma amiga e as xícaras para minha prima. Junto à caixa bonita e o papel seda e o laço repolhudo, coloquei um cartão com a seguinte mensagem:

       Querida Anna,
       Estas xícaras são para ser usadas cotidianamente. São as do dia a dia, para você tomar chá com a família. São para os momentos da vida. Não tenha o menor pudor de usá-las. E se alguma delas se quebrar, é porque já era hora de ser quebrada. Nada mais.
joias não usadas, são pedra bruta. Livros não lidos, puro silêncio ...

       Obrigada por tudo.
       Beijos
       Pat


  Não sei ... Pode ser imaginação ... Mas quando entreguei o presente, ouvi um tilintar alegre dentro da caixa, como delicados brindes, como gargalhadas de agradecimento.

Patrícia Blower, abril de 2009


 

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